domingo, 5 de julho de 2020


Agora, passado há muito o meio deste livro,
não tenho como escondê-lo de mim
nem razão para isso: quando chegar ao fim,
manuseando as pedrinhas que guardei
nas pregas do albornoz, darei por certo
o que já sei: saudades de alguns sítios,
memórias de outros onde elas se instalaram
ainda antes da partida, mas nem um só
que me fizesse ficar, lançando-me ao vento —
ave sem bando ou rumo, apesar de os não ter.

Com as pessoas passou-se a mesma coisa: algumas
luzes na água ou junto dela — balizas ou faróis —,
mas dos portos apenas a ilusão transitória,
competentemente afagada por camisolas de lã,
lábios de cera, a pele em chamas, promessas
de lembrar aquela história, aquele vinho
logo descontinuado pela indústria das cinzas.

Das cinzas das sementes. Da infecundidade.
Desta paternidade de mim mesmo. Fingindo
não saber da impossibilidade física de dar colo
ao meu colo, cem quilos de terra sobre o ar
e outro tanto de febre a esbracejar sorrisos.

Miguel Martins
05/07/2020

Sem comentários:

Enviar um comentário