terça-feira, 29 de outubro de 2024

Só há o teu tempo, disseste. Ou

Todo o tempo é teu, não me lembro.

Ou Vens de muito longe, terei interpretado.

E, de repente, o passado e o presente sobrepuseram-se

como uma pilha de cordas esgarçadas e redes rotas

sobre um cais: coisas que cumpriram a sua função;

já não servem; por vulgares, não são desejadas nos museus;

ficam à mercê do vento, do sol e do salitre;

e, por isso mesmo, se vão tornando mais belas.

Assim somos (perdoem a imodéstia) depois dos 50 —

gaivotas com menos penas, menos voo, menos grasnidos

e muito mais prazer em olhar as águas do alto

de um embarcadouro rasteiro e arruinado

que guarda a memória de tantas rotas quantos os homens

que o pisaram e em cujas pranchas reconhecem,

ocultamente desenhados, outros tantos atlas diacrónicos

do amor e do sofrimento, da energia que nos impele,

cada manhã, para fora da cama, apagando a morte.

Isto tudo numa frase tão pequena, poema das profundezas

de um Japão em que o sol nascente é uma banalidade

quotidiana e inapercebida como as frágeis teia e trama

da ternura.

 

Miguel Martins

29/10/24

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