terça-feira, 17 de outubro de 2023

 

À MEMÓRIA DE ANTÓNIO NUNES MARTINS, MEU PAI

 

Adolescente, jovem adulto,

numa Lisboa de eléctricos e vendedores ambulantes,

anos 40, início dos 50,

gastava os seus tostões, as suas magras sobras,

em alfarrabistas, encadernadores,

em cinemas e gravatas como as dos actores.

 

Unhas sempre limpas, barba escanhoada,

exorcizando o trabalho e o paroquialismo

(já na aldeia, imaginava ananases e índias,

zigurates e zebras),

escutar um sábio ou uma mulher do mundo

distendia-lhe a timidez e iluminava-lhe a noite.

 

Não havia, porém, sorte para tanto azar,

para o tempo e a terra, ambos chãos e chatos,

para a mulher e os filhos,

o trabalho e o trabalho,

e acabou sem fígado, quase sem coração,

numa nuvem estéril, liofilizada.

 

A história repete-se, de avós para trinetos,

de servos da gleba para glabros andróides:

tudo deve mudar para ficar como está,

os olhos mais vivos são os mais deserdados

e a gruta de Ali Babá é só para os vindouros,

que nunca hão-de nascer ou nascem autopatas

 

e aceleram, celerados, sem tempo para as gárgulas,

sem tempo para a paisagem ou para a morte do gato

que lhes deu a infância entre quatro paredes

e é eutanasiado sob uma luz infernal,

sem sequer um olhar onde olhar os seus olhos

para se convencer de que não esteve só.

 

Miguel Martins

17/10/23

Sem comentários:

Enviar um comentário