À MEMÓRIA DE ANTÓNIO NUNES MARTINS, MEU PAI
Adolescente, jovem adulto,
numa Lisboa de eléctricos e vendedores ambulantes,
anos 40, início dos 50,
gastava os seus tostões, as suas magras sobras,
em alfarrabistas, encadernadores,
em cinemas e gravatas como as dos actores.
Unhas sempre limpas, barba escanhoada,
exorcizando o trabalho e o paroquialismo
(já na aldeia, imaginava ananases e índias,
zigurates e zebras),
escutar um sábio ou uma mulher do mundo
distendia-lhe a timidez e iluminava-lhe a noite.
Não havia, porém, sorte para tanto azar,
para o tempo e a terra, ambos chãos e chatos,
para a mulher e os filhos,
o trabalho e o trabalho,
e acabou sem fígado, quase sem coração,
numa nuvem estéril, liofilizada.
A história repete-se, de avós para trinetos,
de servos da gleba para glabros andróides:
tudo deve mudar para ficar como
está,
os olhos mais vivos são os mais deserdados
e a gruta de Ali Babá é só para os vindouros,
que nunca hão-de nascer ou nascem autopatas
e aceleram, celerados, sem tempo para as gárgulas,
sem tempo para a paisagem ou para a morte do gato
que lhes deu a infância entre quatro paredes
e é eutanasiado sob uma luz infernal,
sem sequer um olhar onde olhar os seus olhos
para se convencer de que não esteve só.
Miguel Martins
17/10/23
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