terça-feira, 26 de março de 2024



E se de um lamento nascer outro fim

que não o do mundo? Um homem daqui

para além – sem bússola no pulso, relógio

como forca, tempo e areia e crime

                                    

contra si mesmo, livre

 

de pecado, o fruto possível –

poderá arrastar-se pela carne viva

do sentido único? Se,

encolhendo os ombros,

os continentes se afogarem em

lava e promessa, debaixo

                            da pele

(gelada; cadáver),

acima

do espírito, nuvem de

anjos em queda e copos partidos,

 

vida (alheia) em estilhaços –

será a topografia da fome uma

nota de rodapé nos almanaques?

Se um caminho se fizer casa e não-lugar

 

de descanso, poderá (de hoje para

daqui a nada) um batimento cardíaco

sobrepor-se ao eco finito da gratidão, da

completude, da palavra inconclusiva e

dependente? Guardo no bolso do casaco

 

uma mão-cheia de receios pelo bem-estar

dos outros que me olham daquela

margem, não sabem o que lhes reservo

no domínio da desatenção,

 

do abandono que me faz companhia

 

nos anos bissextos e às

quintas-feiras, um selo de lacre colado

a cuspo nas paredes do estômago

e no céu da boca. E se amanhã acordar

depois de almoço, preso num bocejo

imaterial? Se levar a mão direita à gaveta,

decidir fechá-la, gritar aos vizinhos

de cima,

 

                 decifrar-lhes

os ideogramas chineses,

a tapeçaria do beijo,

a evolução das espécies,

o Último Teorema de Fermat,

 

a passividade dos zelotas,

a síntese do glicogénio

                    e o sabor dos figos?

E se não conhecermos nada para

além das nervuras de uma folha

prostrada no pára-brisas do carro

que nos irá atropelar quando

                                  descermos

a última das avenidas?


FILIPE HOMEM FONSECA

(inédito)

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