E se de um lamento nascer outro fim
que não o do mundo? Um homem daqui
para além – sem bússola no pulso, relógio
como forca, tempo e areia e crime
contra si mesmo, livre
de pecado, o fruto possível –
poderá arrastar-se pela carne viva
do sentido único? Se,
encolhendo os ombros,
os continentes se afogarem em
lava e promessa, debaixo
da pele
(gelada; cadáver),
acima
do espírito, nuvem de
anjos em queda e copos partidos,
vida (alheia) em estilhaços –
será a topografia da fome uma
nota de rodapé nos almanaques?
Se um caminho se fizer casa e não-lugar
de descanso, poderá (de hoje para
daqui a nada) um batimento cardíaco
sobrepor-se ao eco finito da gratidão, da
completude, da palavra inconclusiva e
dependente? Guardo no bolso do casaco
uma mão-cheia de receios pelo bem-estar
dos outros que me olham daquela
margem, não sabem o que lhes reservo
no domínio da desatenção,
do abandono que me faz companhia
nos anos bissextos e às
quintas-feiras, um selo de lacre colado
a cuspo nas paredes do estômago
e no céu da boca. E se amanhã acordar
depois de almoço, preso num bocejo
imaterial? Se levar a mão direita à gaveta,
decidir fechá-la, gritar aos vizinhos
de cima,
decifrar-lhes
os ideogramas chineses,
a tapeçaria do beijo,
a evolução das espécies,
o Último Teorema de Fermat,
a passividade dos zelotas,
a síntese do glicogénio
e o sabor dos figos?
E se não conhecermos nada para
além das nervuras de uma folha
prostrada no pára-brisas do carro
que nos irá atropelar quando
descermos
a última das avenidas?
FILIPE HOMEM FONSECA
(inédito)
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