segunda-feira, 29 de abril de 2024

Sou um naufrágio.

E, na escuridão silenciosa das profundezas,

cada vislumbre de luz já pretérita

é um golpe no decrépito cavername

do meu porão vazio.

Antes de se extinguirem,

esses fulgores reverberam pelo côncavo

de todas as ausências,

da pobreza ontológica desta solidão inominável

que alguns crêem ser só resignação,

mas cujas raízes atravessam a crosta terrestre,

as chamas infernais dos mantos,

a ignorância dos núcleos,

chegam ao outro lado do mundo

e vão buscar a exígua resistência da sua arquitectura

à aparente aridez de um ar desolado e puro,

céu sem a animação cinemática

das alucinações religiosas.

E, quase sempre, esses tímidos clarões

não trazem mais que os vossos rostos,

ou só os vossos nomes,

amigos e amores que a morte ou a estultícia

tombou pelo caminho do meu protraimento com bênçãos,

mas que, em certos dias, hoje, por exemplo,

me parece uma penitência rumo a parte alguma

ou peregrinação num beco cuja única saída

seria o perpétuo olvido

que não consigo conceber.

 

Miguel Martins

29/04/24

Sem comentários:

Enviar um comentário