Suponho que o que mais tenho a agradecer
é terem-me ensinado, a tempo e horas,
na escola primária, a numeração romana,
que, na realidade, nada muda mas transfigura
a irrealidade como um cepo de mármore,
como aqueles versos que escrevemos à revelia de nós mesmos
para que se saiba que estamos e estaremos a pastar,
por muitos e maus anos,
mas com um certo pedigree,
uma certa nonchalance,
marcas de água, mais ou menos discretas,
de um altruísmo à medida, digamos, da política doméstica.
E agradeço também — quase me esquecia —
a desconcertante coloração da tabela periódica,
a lembrar Mondrian antes do segundo café
e dos óculos na cara (a dele ou a nossa?),
e a sua utilidade, de sempre e para sempre,
quando se trata de conquistar raparigas às Quartas de manhã
na extremidade traseira de uma fila
que só se escoará ao terceiro autocarro —
porque as amanuenses são doidas por química,
a ponto de serem constantemente recrutadas
para grupos bombistas e orgias laboratoriais
à maneira do Divino Marquês.
Cumpre-me, por fim, reconhecer a minha dívida
para com a impagável poesia dos clássicos contemporâneos,
mestres de galochas e Flobert à ilharga,
não vá algum pardal dar início ao apocalipse
sem que previamente tenha molhado o bico
no inefável tinteiro da rebeldia por escrito,
no imorredouro manancial das elucubrações
que o nascer do sol teima em desmentir,
havendo ainda, às vezes, só para complicar,
o som da flauta de um amolador
a encher as ruas de miragens.
Miguel Martins
10/04/24
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