quarta-feira, 10 de abril de 2024

Suponho que o que mais tenho a agradecer

é terem-me ensinado, a tempo e horas,

na escola primária, a numeração romana,

que, na realidade, nada muda mas transfigura

a irrealidade como um cepo de mármore,

como aqueles versos que escrevemos à revelia de nós mesmos

para que se saiba que estamos e estaremos a pastar,

por muitos e maus anos,

mas com um certo pedigree, uma certa nonchalance,

marcas de água, mais ou menos discretas,

de um altruísmo à medida, digamos, da política doméstica.

 

E agradeço também — quase me esquecia —

a desconcertante coloração da tabela periódica,

a lembrar Mondrian antes do segundo café

e dos óculos na cara (a dele ou a nossa?),

e a sua utilidade, de sempre e para sempre,

quando se trata de conquistar raparigas às Quartas de manhã

na extremidade traseira de uma fila

que só se escoará ao terceiro autocarro —

porque as amanuenses são doidas por química,

a ponto de serem constantemente recrutadas

para grupos bombistas e orgias laboratoriais

à maneira do Divino Marquês.

 

Cumpre-me, por fim, reconhecer a minha dívida

para com a impagável poesia dos clássicos contemporâneos,

mestres de galochas e Flobert à ilharga,

não vá algum pardal dar início ao apocalipse

sem que previamente tenha molhado o bico

no inefável tinteiro da rebeldia por escrito,

no imorredouro manancial das elucubrações

que o nascer do sol teima em desmentir,

havendo ainda, às vezes, só para complicar,

o som da flauta de um amolador

a encher as ruas de miragens.

 

Miguel Martins

10/04/24

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