Para o M.
No dia da morte da tua filha, que nunca conheci,
um braço de rio entrar-me-á pela boca, rio quente
e sujo, sumido e pegajoso, como prestidigitador
que nos antecipa os gestos e desnatura a vida,
rio de cal viva que, extinguindo-se, nos apaga a voz.
Nunca tive nem quis ter filhos, outras crianças
ou animais por perto, mas gosto dos cavalos,
dos seus saltos quando descritos por ti, do vinho,
mesmo o que deixámos por beber, e, sobretudo,
da tua irritação quando ferem a colegialidade
de tudo quanto, apesar das nossas piores faces,
dos meus óculos e dos teus coletes, fomos, somos
e seremos no areal de um tempo que não houve
ou de que só uma magra lingueta nos abençoou os pés,
durante aquela eternidade que separa o sol da lua.
Agora, resta-nos aguardar, flutuar num espaço
com néones a mais, verdor a menos, e do riso
de outrora apenas uns ecos distantes que se vão
assemelhando aos estalidos metálicos que marcam
os minutos e obstinadamente se despedem de nós.
Resta-nos — revolutionibus orbium
coelestium —
testemunhar o derrube das estátuas, a queda
dos deuses e de Deus, o arranque das trepadeiras
e, com ele, o desaparecimento das lagartixas,
menos as que se crêem dragões e são fastio.
Mas (anda) ainda há tempo para um último gole,
para aquela taberna, sabes?, em ruínas-só-vento,
para ver passar as pernas mais bonitas e as outras,
cuja fealdade nos excita a insubmissão à moda.
Para um abraço, Amigo, como os do nosso Rui.
Miguel Martins
22/10/24
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