terça-feira, 22 de outubro de 2024

Para o M.

 

No dia da morte da tua filha, que nunca conheci,

um braço de rio entrar-me-á pela boca, rio quente

e sujo, sumido e pegajoso, como prestidigitador

que nos antecipa os gestos e desnatura a vida,

rio de cal viva que, extinguindo-se, nos apaga a voz.

 

Nunca tive nem quis ter filhos, outras crianças

ou animais por perto, mas gosto dos cavalos,

dos seus saltos quando descritos por ti, do vinho,

mesmo o que deixámos por beber, e, sobretudo,

da tua irritação quando ferem a colegialidade

 

de tudo quanto, apesar das nossas piores faces,

dos meus óculos e dos teus coletes, fomos, somos

e seremos no areal de um tempo que não houve

ou de que só uma magra lingueta nos abençoou os pés,

durante aquela eternidade que separa o sol da lua.

 

Agora, resta-nos aguardar, flutuar num espaço

com néones a mais, verdor a menos, e do riso

de outrora apenas uns ecos distantes que se vão

assemelhando aos estalidos metálicos que marcam

os minutos e obstinadamente se despedem de nós.

 

Resta-nos — revolutionibus orbium coelestium

testemunhar o derrube das estátuas, a queda

dos deuses e de Deus, o arranque das trepadeiras

e, com ele, o desaparecimento das lagartixas,

menos as que se crêem dragões e são fastio.

 

Mas (anda) ainda há tempo para um último gole,

para aquela taberna, sabes?, em ruínas-só-vento,

para ver passar as pernas mais bonitas e as outras,

cuja fealdade nos excita a insubmissão à moda.

Para um abraço, Amigo, como os do nosso Rui.

 

Miguel Martins

22/10/24

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