quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Precisam de saladas, de águas termais, massagens,

de gravações do zunido dos besouros e do arrulho

do beija-flor, para que os seus corpos descansem

de tão pouco trabalho e as suas mentes se alheiem

— por breves instantes — da ambição competitiva

que as comanda, como se a frugalidade fosse um deserto

sem lugar para a podolatria ou para a contemplação

dos fósseis de pterodáctilos e para a inquieta religiosidade

que suscitam. Ou precisarão antes de dilúvios e pragas

de gafanhotos, de grilhetas e galés, do angustiante som

dos amotinados que — atados de pés e mãos —

são deitados à água, para que desejem apenas oxigénio

e uma côdea de pão, para que, num impulso vital,

recordem um enlevo infantil e o manso mistério

da cor das coccinelas e do voo dos dentes-de-leão?

É preciso lembrar o eterno atavismo do berço de Judas

e das garras de gato, as poluções secretas do Inquisidor-

-Mor e o calculismo consciente de todas as mãezinhas

para que agradeçamos os estados de sítio como estados

de graça e nos juntemos à roda vivaz da tarantela,

felizes por não ser dança de São Vito.

 

Miguel Martins

31/10/24

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