Só há o teu tempo, disseste. Ou
Todo o tempo é teu, não me lembro.
Ou Vens de muito longe, terei
interpretado.
E, de repente, o passado e o presente sobrepuseram-se
como uma pilha de cordas esgarçadas e redes rotas
sobre um cais: coisas que cumpriram a sua função;
já não servem; por vulgares, não são desejadas nos museus;
ficam à mercê do vento, do sol e do salitre;
e, por isso mesmo, se vão tornando mais belas.
Assim somos (perdoem a imodéstia) depois dos 50 —
gaivotas com menos penas, menos voo, menos grasnidos
e muito mais prazer em olhar as águas do alto
de um embarcadouro rasteiro e arruinado
que guarda a memória de tantas rotas quantos os homens
que o pisaram e em cujas pranchas reconhecem,
ocultamente desenhados, outros tantos atlas diacrónicos
do amor e do sofrimento, da energia que nos impele,
cada manhã, para fora da cama, apagando a morte.
Isto tudo numa frase tão pequena, poema das profundezas
de um Japão em que o sol nascente é uma banalidade
quotidiana e inapercebida como as frágeis teia e trama
da ternura.
Miguel Martins
29/10/24
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