Não sou
particularmente boa pessoa.
Não tenho especial
bom gosto.
A minha família é
como as demais.
As coisas muito boas
desperdiçam-se em mim.
Dentro dos limites do
razoável burguês,
qualquer coisa me
serve.
Prefiro conversar com
um velejador solitário,
um condutor de
tanques de guerra,
um taxista de
Istambul
do que com um
pensador da pós-modernidade
ou um poeta de
palavras astuciosamente enclavinhadas.
Mais: prefiro despir
uma operária de Manchester
a qualquer coisa
dessas
(por mim, tudo à
minha volta estaria em trânsito constante).
Não sou muito
competente em nada,
a preguiça não ajuda
e a pressa
inexplicável muito menos.
Sou imediatista:
materialista e
anárgiro.
Tenho uma aproximação
instrumental aos sonhos
e uma abordagem
nefelibata às coisas práticas
(é óbvio que se pode
ser volúvel sem se ser gelatinoso).
Habituei-me a
depender dos outros,
a contar com eles
e a não me considerar,
sequer, em dívida.
Húbris sem némesis.
Tenho todo o tipo de
preconceitos.
Apoio-me num andaime
de suficiências reveladas.
A avidez tomou em mim
o lugar da razão e da justiça.
Demagogia por
demagogia, mais vale nenhuma
e a retórica é uma
canseira.
É preciso muita
objectividade para viver tão enovelado
e é preciso viver
muito enovelado para ser tão objectivo
(de igual modo, tenho
de ter muita saúde para ter tão pouca
— a gordura
armazenada nas bossas dos camelos
ou um acaso genético
ou um sofá herdado).
Ora bem: dito isto,
sou dos tipos
menos desinteressantes que conheci.
Tenho olfacto para
animar qualquer sala durante meia hora
e só não me dão de
beber em ambientes daquela miopia
— empedernidamente
fúnebre —
que se topa à légua
pela acne tardia,
a pele amarelada,
a cara emaciada dos
que só têm uma (e logo assim!),
gente que não sabe
soldar dois arames
e faz minetes como os
gatos bebem leite.
Miguel Martins
09/03/2020
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