Raoul Dufy pintava paisagens imponderáveis
com cores que acampam por detrás dos olhos
instando-nos à vida,
à viagem sem fuga.
Mas, se comprares um quadro
e o pendurares na parede,
onde só tu e a tua côrte o vêem,
as flores murcham,
as árvores despem-se,
o mar encapela-se,
o Verão faz-se Outono.
E, se comprares o quadro com dinheiro sujo,
ganho ao serviço da artificialidade,
da exploração dos homens e da terra,
nesse caso, o Outono faz-se Inverno
e uma bruma gordurosa, pestilenta,
não te deixará ver um milímetro
para lá da imperceptível camada de verniz
que cobre a tinta e a paisagem.
Mas se, pelo contrário, fores a um museu
e descreveres o quadro, que foi emprestado,
a uma rapariga de vestido ligeiro
diante do espaço que ele deixou na parede,
nesse caso, os vossos gestos tornar-se-ão leves,
primaveris,
e talvez acabem a comer um gelado
numa esplanada de bairro.
Mais: se, em vez do museu, estiveres sobre o molhe
de Trouville-sur-Mer, ainda que num tapete-voador,
e o cheiro da tinta der lugar à maresia
e te esqueceres
de onde antes tinhas visto aquela paisagem,
o próprio Dufy inspirará de novo o Verão
e encaminhará o almoço com um pastis bem fresco,
antes de regressar ao seu hotel
e, entre as aguarelas e uma sesta,
optar por sonhar com a rapariga do museu.
Miguel Martins
29/04/20
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