sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Texto de Manuel da Silva Ramos sobre E. M. de Melo e Castro no Jornal do Fundão de hoje

 



Passei esta manhã diante da casa onde viveu Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, na rua Marquês d´Ávila e Bolama. Era aí, do quintal sobrelevado, que quando era miúdo, ele se debruçava para ouvir a fanfarra militar e ver desfilar os soldados que vinham do quartel todo próximo. Esta recordação de infância nunca foi esquecida e há uma dúzia de anos quando o questionei sobre os seus tempos de meninice na Covilhã, foi esta que ele retirou da sua cartola da memória. Os anos passaram e o filho do director da Escola Industrial e Comercial Campos Melo foi estudar durante quatro anos para Inglaterra onde se formou em Engenharia Têxtil. De regresso à Covilhã, vai ser professor na Escola do pai. É desse tempo que eu me lembro dele ao lado da sua mulher, a poetisa Maria Alberta Menéres. Este casal de professores que se dedicava à poesia, era para mim, jovem com ambições literárias, um exemplo vivaz. Representava na província a aura da criação literária com todo o prestígio que isso significava na época. Diga-se que, nessa altura, a escrita ainda não estava banalizada como hoje e os criadores eram realmente respeitados. Nos meados dos anos sessenta, o casal rumou para Lisboa levando na bagagem a “ Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa” que os dois tinham organizado. Melo e Castro vai rapidamente constituir-se como o símbolo da poesia experimental em Portugal. Nunca mais parou. Entre o magistério (um dos últimos estabelecimentos em que leccionou foi o Instituto Piaget em Almada) e a poesia e o ensaio. Estive com ele duas vezes. Uma na estação de Campanhã no Porto, entre dois comboios. Com a sua longa barba branca pareceu-me nesse dia um sábio grego. A segunda vez foi na sede do Oriental de S. Martinho na Covilhã onde fomos convidados os dois. Nessa noite, Melo e Castro proferiu uma conferência cheia de sabedoria e erudição. Nesse instante vi que era um grande ensaísta. Nunca mais esqueci esse facto. Quanto à sua poesia, ela não parou de evoluir. Melo e Castro procurou sempre e até nos vídeo-poemas. Na sua extensa obra poética, isto pode ver-se em três momentos distanciados no tempo. “Ideogramas”, de 1962, é, em Portugal, uma das primeiras balizas da poesia concreta, um movimento que no Brasil já tinha largamente expressão. Em “Cara Lh  Amas – Poemas Eróticos e Sarcásticos”, de 1975, Melo e Castro explode em liberdade absoluta, ele que tinha sido incomodado pelos tribunais do Estado Novo pelos seus escritos publicados na “ Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, organizada por Natália Correia. E em 2015, surpreende mais uma vez com “ 15 Odes Ocas”. Miguel Martins, conceituado crítico literário, escreveu na revista “ Colóquio”: «Estes poemas apresentam-se como verdadeira novidade no conjunto da sua obra e são de um brilhantismo acutilante e de um pensamento heterodoxo e ultralibertário». Poesia «com força politicamente interventiva» no dizer do mesmo crítico, que cita propositadamente o subtítulo da obra de Melo e Castro para elucidar o seu propósito: «Textos de escárnio e mal dizer, de intervenção, denúncia, contestação e crítica». Ser poeta vanguardista em Portugal é arriscar-se a incompreensão, a não-leitura. Melo e Castro sabia isso e foi até ao fim um artista coerente. Na exposição “ O Caminho do Leve” que fez na Fundação Serralves em 2006, ele reivindicou a sua relação com uma tradição literária (poesia barroca, poesia concreta, Mallarmé, Apollinaire) e uma tradição artística que assume a sua filiação em movimentos de vanguarda e de ruptura como o dadaísmo e a arte conceptual. Creio que as novas gerações que não gostem do trivial, do racional, descobrirão Melo e Castro, uma das vozes mais inovadoras e subversivas da poesia portuguesa dos últimos cinquenta anos, quando forem publicadas as suas obras completas em três volumes. Enquanto o futuro não chama por este grande criador prometeico, não o esqueçamos na Covilhã. Embora homenageado em 2016 pela Casa de Cultura José Marmelo e Silva do Paul a que se associou a Câmara da Covilhã, e com o seu rosto a ornar uma das paredes do edifício do Arquivo Municipal, a cidade deve um derradeiro preito de recordação a um ilustre filho da terra que faleceu no Brasil e que foi, não conheço outro, o único e verdadeiro poeta têxtil.

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