Passei esta manhã diante da casa onde viveu Ernesto Manuel Geraldes de
Melo e Castro, na rua Marquês d´Ávila e Bolama. Era aí, do quintal sobrelevado,
que quando era miúdo, ele se debruçava para ouvir a fanfarra militar e ver
desfilar os soldados que vinham do quartel todo próximo. Esta recordação de
infância nunca foi esquecida e há uma dúzia de anos quando o questionei sobre
os seus tempos de meninice na Covilhã, foi esta que ele retirou da sua cartola
da memória. Os anos passaram e o filho do director da Escola Industrial e
Comercial Campos Melo foi estudar durante quatro anos para Inglaterra onde se
formou em Engenharia Têxtil. De regresso à Covilhã, vai ser professor na Escola
do pai. É desse tempo que eu me lembro dele ao lado da sua mulher, a poetisa
Maria Alberta Menéres. Este casal de professores que se dedicava à poesia, era
para mim, jovem com ambições literárias, um exemplo vivaz. Representava na
província a aura da criação literária com todo o prestígio que isso significava
na época. Diga-se que, nessa altura, a escrita ainda não estava banalizada como
hoje e os criadores eram realmente respeitados. Nos meados dos anos sessenta, o
casal rumou para Lisboa levando na bagagem a “ Antologia da Novíssima Poesia
Portuguesa” que os dois tinham organizado. Melo e Castro vai rapidamente
constituir-se como o símbolo da poesia experimental em Portugal. Nunca mais
parou. Entre o magistério (um dos últimos estabelecimentos em que leccionou foi
o Instituto Piaget em Almada) e a poesia e o ensaio. Estive com ele duas vezes.
Uma na estação de Campanhã no Porto, entre dois comboios. Com a sua longa barba
branca pareceu-me nesse dia um sábio grego. A segunda vez foi na sede do
Oriental de S. Martinho na Covilhã onde fomos convidados os dois. Nessa noite,
Melo e Castro proferiu uma conferência cheia de sabedoria e erudição. Nesse
instante vi que era um grande ensaísta. Nunca mais esqueci esse facto. Quanto à
sua poesia, ela não parou de evoluir. Melo e Castro procurou sempre e até nos
vídeo-poemas. Na sua extensa obra poética, isto pode ver-se em três momentos
distanciados no tempo. “Ideogramas”, de 1962, é, em Portugal, uma das primeiras
balizas da poesia concreta, um movimento que no Brasil já tinha largamente
expressão. Em “Cara Lh Amas – Poemas Eróticos
e Sarcásticos”, de 1975, Melo e Castro explode em liberdade absoluta, ele que
tinha sido incomodado pelos tribunais do Estado Novo pelos seus escritos
publicados na “ Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, organizada por Natália
Correia. E em 2015, surpreende mais uma vez com “ 15 Odes Ocas”. Miguel
Martins, conceituado crítico literário, escreveu na revista “ Colóquio”: «Estes
poemas apresentam-se como verdadeira novidade no conjunto da sua obra e são de
um brilhantismo acutilante e de um pensamento heterodoxo e ultralibertário».
Poesia «com força politicamente interventiva» no dizer do mesmo crítico, que
cita propositadamente o subtítulo da obra de Melo e Castro para elucidar o seu
propósito: «Textos de escárnio e mal dizer, de intervenção, denúncia,
contestação e crítica». Ser poeta vanguardista em Portugal é arriscar-se a
incompreensão, a não-leitura. Melo e Castro sabia isso e foi até ao fim um
artista coerente. Na exposição “ O Caminho do Leve” que fez na Fundação
Serralves em 2006, ele reivindicou a sua relação com uma tradição literária
(poesia barroca, poesia concreta, Mallarmé, Apollinaire) e uma tradição
artística que assume a sua filiação em movimentos de vanguarda e de ruptura
como o dadaísmo e a arte conceptual. Creio que as novas gerações que não gostem
do trivial, do racional, descobrirão Melo e Castro, uma das vozes mais
inovadoras e subversivas da poesia portuguesa dos últimos cinquenta anos,
quando forem publicadas as suas obras completas em três volumes. Enquanto o
futuro não chama por este grande criador prometeico, não o esqueçamos na
Covilhã. Embora homenageado em 2016 pela Casa de Cultura José Marmelo e Silva
do Paul a que se associou a Câmara da Covilhã, e com o seu rosto a ornar uma
das paredes do edifício do Arquivo Municipal, a cidade deve um derradeiro
preito de recordação a um ilustre filho da terra que faleceu no Brasil e que
foi, não conheço outro, o único e verdadeiro poeta têxtil.
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