domingo, 23 de outubro de 2022

 


A JANELA ESCANCAROU-SE

 

Ainda não há luz no céu. Fumo

no ar. Lá fora, sobre a gravilha,

uma figura.

Irreconhecível. Envolta em bruma

e penumbra.

Bate na madeira negra e rachada

da tua porta.

 

E, se perguntares o nome de quem está

a incomodar-te em casa, uma voz dirá:

 

Aquela que expulsaste da tua vida

como lastro inútil.

Aquela que despejaste

como água de lavar pratos.

Que permitiste que secasse

como um lilás sob o calor

do meio-dia.

Que está sempre a morrer. Sempre a regressar.

 

Chamo-me verdade.

Nada me pára: nem a madeira

da tua porta. Nem a porta do teu quarto.

Nem a pele da tua carne. Nem

o telhado de osso sobre o teu cérebro.

Vou entrar.

 

Como uma alvorada.

Como um dia cuja chegada

nada consegue evitar.

 

Günter Kunert

(versão: Miguel Martins)

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