sexta-feira, 19 de maio de 2023

Do meu livro Desvão (não edições, 2016)

 

Agora, és outra pessoa,

cheia de banalidades e pequenas alegrias.

O tempo e a distância encarregaram-se disso.

Sim, na minha ausência é costume desmoronarem-se

as encostas, outrora cuidadosamente escoradas.

Mas, mesmo colocando de parte o meu ego,

é evidente o encanto da normalidade,

da paz doméstica e social

e do correcto dimensionamento de cada um,

sem megalomanias nem paióis de pólvora seca,

sem insónias nem gritos

nem fantasmas de grandes artistas e pequenos ditadores

(ou vice-versa)

a correrem pela casa.

 

Não gosto de gatos nem de crianças,

de celebrações colectivas e famílias,

de prolongadas distensões estivais,

nem sei estar indubitavelmente presente,

como o frasco dos picles, na prateleira de baixo do armário.

Nunca soube nem fingi saber – conceder-me-ás isso,

assim como reconheço que nunca, sequer, senti culpa

por todos os pecados que pequei e pecarei

enquanto o tabaco não me paralisar os pulmões.

Os meus dias são feitos de excessos e vazios

e o vazio excessivo é a própria matéria por que pugno

o muito tempo todo em que não me calha compor

estas vagas linhas sobrepostas

a que insistem em chamar poesia

mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono.


Era impossível permanecermos juntos –

dizem-mo a razão e a urgência de um impulso vital

para qualquer coisa só por ser a seguinte. No entanto,

uma mágoa moinha-me a pequena hélice do coração,

enquanto, à pressa, trinco uma sandes de mundo

na cantina do niilismo (ou vice-versa)

ou conduzo um carro de vento rumo ao Magreb medieval.


Das horas que passámos juntos não há remissão

e isso consola-me como nada mais, num recanto

muito fotogénico da memória ou talvez disso a que se chama alma.

Espero que esta te vá encontrar bem,

com meninos à ilharga, um marido que leia

o Diário de Notícias e romances históricos

e, apesar de tudo, um sorriso

ante a imensa precisão com que coloco uma mão toda

nas feridas dos outros

para evitar o ardor da tintura de iodo

nas minhas.


Miguel Martins

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