quinta-feira, 18 de maio de 2023

 


Ó meu cachimbo! Amo-te imenso!

Tu, meu turíbulo sagrado!

Com que, senhor Abade, incenso

A Abadia do meu passado.

 

Fumo? E ocorre-me à lembrança

Todo esse tempo que lá vai,

Quando fumava, ainda criança,

Às escondidas do meu Pai.

 

Vejo passar a minha vida,

Como n'um grande cosmorama:

Homem feito, pálida Ermida,

Infante, pela mão da ama...

 

Por alta noite, ás horas mortas,

Quando não se ouve pio, ou voz,

Fecho os meus livros, fecho as portas

Para falar contigo a sós.

 

E a noite perde-se em cavaco,

Na Torre d'Anto, aonde eu moro!

Ali, metido no buraco,

Fumo e, a fumar, às vezes... choro.

 

Chorando (penso e não o digo)

Os olhos fitos neste chão,

Que tu és leal, és meu amigo...

Os meus amigos onde estão?

 

Não sei. Trá-los-á o «nevoeiro»...

Os três, os íntimos, Aqueles,

Estão na Morte, no estrangeiro...

Dos mais não sei, perdi-me d'eles.

 

Morreram-me uns. Por eles peço

A Deus, quando está de maré:

E, àss noites, quando eu adormeço,

Fantasmas, vêm, pé ante pé...

 

Tristes, nostálgicos da cova,

Entram. Sorrio-lhes e falo...

Deixam-se estar na minha alcova,

Até se ouvir cantar o galo...

 

Outros, por esses cinco oceanos,

Por esse mundo erram, talvez...

Não me escreveis, há tantos anos!

Que será feito de vocês?

 

Hoje, delícias do abandono!

Vivo na paz, vivo no limbo:

Os meus amigos são o Outono,

O Mar e tu, ó meu Cachimbo!

 

Ah! quando for do meu enterro,

Quando eu partir gelado, enfim,

No meu caixão de mogno e ferro,

Quero que vás ao pé de mim.

 

Santa mulher que me tratares,

Quando em teus braços desfaleça,

Caso meus olhos não cerrares,

Embora! Que isto não te esqueça:

 

Coloca, sob a travesseira,

O meu cachimbo singular

E enche-o, solicita enfermeira,

Com Gold-Fly, para eu fumar...

 

Como passar a noite, amigo!

No Hotel da Cova sem conforto?

Assim, levando-te comigo,

Esquecer-me-ei de que estou morto...

 

António Nobre

Sem comentários:

Enviar um comentário