terça-feira, 7 de janeiro de 2025



OS ESCAMBOS


a Miguel Martins


Senta-se à mesa, bebe seu café de origem

etíope, hoje migrante 

universal, bebe-o do seu continente,

uma louça barata qualquer.

Chinesa ou global, qualquer

que seja sua tatuagem de fabricação. 

Das tetas de vacas vivas em seu leite; 

dos chifres na cabeça de vacas mortas,

seu A, neste alfabeto.


Não sei se dali me acena 

um egípcio, um fenício, um canaanita. 

Dessas letras o que se agita é um comércio,

uns bens de consumo antiquíssimo.

Envio essa carta com signos

surgidos apenas 

para contar vacas ou cabras.

A desconfiança mercantil.

Tudo é um escambo para a sobrevivência.


O metrônomo do pulso, na mixórdia

do coração, é o mesmo 

em todas as línguas, diz Les Murray 

num vídeo, e a minha mixórdia se acalma.


Ou se acelera o coração, e dá no mesmo 

para os ritmos das máquinas e dos braços

a gerar no país o amado, idolatrado Produto

Interno Bruto. Quando a brutalidade 

ou a ternura dos meus intestinos 

só comove

quem está ao alcance das minhas mãos.


Essas palavras, inventadas e enriquecidas

como urânio por outros, 

querem uma fissão ou fusão? Não sei.

Querem dividir-me, repartir-me entre outros

que são meus por golpe

do acaso ou destino, como uma cesta

pobre de peixes ou pães parcos

nas mãos de um Cristo qualquer.


Mas aí vem de novo a grandiloquência 

cansativa. E eu queria tanto um dia

poder só sussurrar, sem me preocupar 

se a vigilância do meu quinhão de terra 

ou língua, naquela noite, 

está sob os cuidados de uma legião

de anjos ou de demônios.



Ricardo Domeneck

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