OS ESCAMBOS
a Miguel Martins
Senta-se à mesa, bebe seu café de origem
etíope, hoje migrante
universal, bebe-o do seu continente,
uma louça barata qualquer.
Chinesa ou global, qualquer
que seja sua tatuagem de fabricação.
Das tetas de vacas vivas em seu leite;
dos chifres na cabeça de vacas mortas,
seu A, neste alfabeto.
Não sei se dali me acena
um egípcio, um fenício, um canaanita.
Dessas letras o que se agita é um comércio,
uns bens de consumo antiquíssimo.
Envio essa carta com signos
surgidos apenas
para contar vacas ou cabras.
A desconfiança mercantil.
Tudo é um escambo para a sobrevivência.
O metrônomo do pulso, na mixórdia
do coração, é o mesmo
em todas as línguas, diz Les Murray
num vídeo, e a minha mixórdia se acalma.
Ou se acelera o coração, e dá no mesmo
para os ritmos das máquinas e dos braços
a gerar no país o amado, idolatrado Produto
Interno Bruto. Quando a brutalidade
ou a ternura dos meus intestinos
só comove
quem está ao alcance das minhas mãos.
Essas palavras, inventadas e enriquecidas
como urânio por outros,
querem uma fissão ou fusão? Não sei.
Querem dividir-me, repartir-me entre outros
que são meus por golpe
do acaso ou destino, como uma cesta
pobre de peixes ou pães parcos
nas mãos de um Cristo qualquer.
Mas aí vem de novo a grandiloquência
cansativa. E eu queria tanto um dia
poder só sussurrar, sem me preocupar
se a vigilância do meu quinhão de terra
ou língua, naquela noite,
está sob os cuidados de uma legião
de anjos ou de demônios.
Ricardo Domeneck
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