Para Luigi Mangione
Será que nos podemos queixar da inconsistência dos nossos genes?
Eles — sim, eles, porque são outros — vêm criando, há gerações,
uma teia tentacular de apelidos hermeticamente justapostos,
sem deixar frestas, como os muros de pedra seca da ilha de Baljenac.
Acautelam, com um atavismo já inconsciente mas nem por isso dúctil,
qualquer intromissão que resultasse em partilhas, no impensável,
inestético desmoronamento de um módico de ordem ancestral.
É legítimo pensar que vivem num lugar algo baço e abafado,
apesar da fuga para as monções quando a pátria os aborrece,
mas, na verdade, os malefícios da endogamia só estiolam as íris
a quem a vê de fora, quer se cale, vocifere sem ser ouvido
ou se imole pelo fogo diante do palácio presidencial de uma qualquer
república de cacau e suor que, para eles — sim, eles — é o País da
Cocanha.
Aí, todos os anos de todos os séculos, no 1º de Abril, pontualmente
ao nascer do sol, presos uns aos outros por jóias de uma filigrana
invisível,
partem em procissão rumo a um templo imaterial, renovam as suas
energias
escutando, em coro, o som imperceptível de um órgão com tubos ilusórios
e, depois, anodizados por essa prestidigitação, regressam em força
aos conselhos de administração da grande colmeia infértil
e, eivados de generosa graça divina, decidem outorgar mais um dia de
férias
ao Sr. Ferreira-Smith-Fabbro-Forgeron, ou qualquer incumbência em
cirílico
ou sânscrito, que, coitado, perdeu dois dedos a calçar um puro-sangue
mas esfregou os cotos até à hilaridade ao vê-lo vencer um obstáculo
intransponível,
erguido, com arrojo e troncos de sequóias, sobre a vala comum dos seus
antepassados.
Miguel Martins
06/01/25
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