Uma poesia que recusa a soberba da afectação, mas que encontra, no seu
caminho marcadamente pessoal, o lugar de uma expressão capaz do seu próprio
fulgor.
A poesia de Miguel Martins é deliberadamente composta em tom menor.
Como Fernando Assis Pacheco antes dele, M. Martins poderia dizer: “Peçam a
grandiloquência a outros/acho-a pulha no estado actual da economia”
(retirando-lhe, talvez, a particularidade conjuntural, que parece não importar
sobremaneira nos seus versos). Basta percorrer, tão simplesmente, alguns
títulos dos vários livros que publicou, para perceber nele um poeta incapaz de
ser grandiloquente: Penúltimos Cartuchos (Tea For One, 2008), O Taberneiro
(Poesia Incompleta, 2010), Lérias(Averno, 2011), A Metafísica das T-Shirts
Brancas (Edições 50 Kg, 2012), Cãibra (Ediresistência, 2012), Desvão (não
(Edições), 2016), Pince-Nez (Douda Correria, 2016). Curiosamente, é possível
que O Caçador Esquimó seja o título menos imediatamente compreensível de Miguel
Martins. Mas, mesmo esse, permite uma decifração que em breve desobscurece o
que parece opaco (ainda que nunca caminhemos aqui no terreno do óbvio) — “O
pequeno golpe que me abriste, feito de amor e abandono,/ entre a veia cava e a
beira da estrada onde, por vezes, me sento sozinho,/ olhos fechados, no meio de
uma sala cheia de gente,/ é o caminho por onde parte e não regressa o caçador
esquimó/ que vi num filme, ainda miúdo, quando as luzes se apagavam mesmo/ e,
então, o mundo era só ali.” (p.20) A explicação, em sentido estrito, poderá ter
uma importância limitada, circunscrita à evocação de um fragmento biográfico,
mas talvez não os caminhos que a ela vão dar. Como acontece não poucas vezes em
Miguel Martins, a infância é um marco miliário desta poesia, mas o sujeito
encara-o com notável desprendimento. Como faz com as várias facetas do seu
tempo — “Não me identifico com a minha infância. Não me revejo/ na minha
juventude. Não morro de amores pelo rapaz/ que era há vinte anos. Não quero
saber quem sou e, desde já,/ não me interessa quem possa vir a ser.” (S.A., Do
Lado Esquerdo, 2017) De onde a firmeza com que se enfrentam essas zonas de
risco, como a infância, ou a família, temáticas quase proibidas, pelos perigos
corridos (que esta poesia soberanamente despreza), pelo carácter lábil dessas
temáticas, sempre prestes a descambar no sentimentalismo ou no involuntário
risível.
A escrita de Miguel Martins não sofre dessa espécie de falsa modéstia
em que muitas caem. Esse defeito consistiria em desviar, a todo o custo, o foco
para fora do eu, em prol de uma alegada impessoalidade de matriz modernista.
Trata-se, é bem de ver, de um preconceito. De um preconceito e de uma leitura
deficiente dos dados da história da cultura. A impessoalidade de um Eliot não é
estranha às disposições de Keats. Nem estas são alheias a um William Cowper
(anterior a Keats e um dos mais entranhados esgaravatadores, e depredadores, do
eu). Por isso, a abdicação do eu não é coisa nova, nem poderia sê-lo. Poesia do
eu, esta, portanto; mas só até certo ponto. Porque a proximidade entre lirismo
e autobiografia — já detectada em Miguel Martins por uma exegeta da craveira de
Rosa Maria Martelo — está longe de trair uma concepção ingénua dessa
articulação. E nem mesmo a presença reiterada de pronomes na primeira pessoa
poderá indiciar qualquer identificação menos lúcida, ou uma entrega impensada a
qualquer confessionalismo — “Não, não são os poemas que me interessam, mas os
poetas, os gritos noite dentro,/ a casa que é alheia e se faz minha,/ seja
defronte ou em Paris ou mesmo/ numa centúria distante e repintada.” (p.11) A
casa, que é uma dimensão exterior ao sujeito do poema, rapidamente se expande
em dois feixes: espaço e tempo distantes. Essa é outra das matrizes desta
poesia — a dispersão na História e na geografia, a deriva e a vagabundagem. Um
dos poemas de O Caçador Esquimó termina com um verso em posição isolada: “Também
tu, meu amor, nasceste no exílio.” O sujeito marca, com este verso, a sua
pertença e a sua reunião nesse estado, já detectável num livro anterior —
“Mesmo quando fingia incendiar paixões, pensava já no exílio,/ na
espreguiçadeira com que havia de contemplar o Bósforo ou a raia” (Pince-Nez) —
e em vários pontos da obra de Miguel Martins. Por exemplo: “Não ser marinheiro.
Não ser coisa alguma. E, ainda assim, zarpar desse lugar de fama sem proveito.
Aportar às quatro estações, simultaneamente, num único cachimbo (milho de
cerejeira)” (Proibida a Entrada a Animais Cães (Excepto Cães-Guia), Língua
Morta, 2010). Algo que talvez se relacione com a noção de liberdade com que
começa um dos poemas deste livro: “A liberdade de ser inteiro, ao caminhar por
campos,/ que podem ser casas ou palácios, sem vozes humanas/ que não as de
passagem, e descobrir quem quero ser/ e sou e não posso deixar de ser, não há
açoite que mo roube,/ numa conta de colar enterrada na areia, no azul pálido/
de uma taça votiva, num lago de nenúfares e batráquios,/ num alfarrábio que me
conta, afinal, a minha história,/ feita de fugas para grutas estelares, mas
também de lutas,/ punhos ensanguentados, que, depois, resta untar/ com a música
possível” (p.18) A actividade arqueológica — cujos métodos e práticas estes
versos tantas vezes sugerem (arqueologia que faz, de resto, parte da formação
académica do poeta) — é uma área cujas indagações se coadunam com os interesses
irradiantes e digressivos desta poesia. Uma poesia que recolhe artefactos históricos,
mas também captura espécimes animais, que estuda ambientes circundantes ou
remotos, e especula em torno dos gestos mais vulneravelmente humanos. A
amplificação e o acúmulo de sentidos e de planos da percepção é um dos factores
que caracterizam os poemas de Miguel Martins. Contudo, essa sobreposição não
determina qualquer excesso composicional ou expressivo. Hierarquias e
prioridades são constantemente revoltadas, a ponto de nada se tornar uma
entidade estável, mas antes um organismo dinâmico. Como células mortas que
fossem sendo renovadas por novas.
Com uma atitude de louvável desafectação, que lhe permite repudiar
“exegetas e outros apreciadores de fungos” (p.10), Miguel Martins surge, a cada
novo livro, como uma espécie de extraprograma, um poeta desenquadrado em
relação a quaisquer grelhas, previsíveis ou nem tanto. Convenhamos: quantos
poetas poderiam escrever sobre flores, e sobreviver? Este consegue-o — “Há nas
pétalas das flores uma qualidade táctil transcendente, uma daquelas sensações
sublimadas que requerem silêncio e solidão/ e nos impregnam de uma tristeza
boa, de uma tristeza que vale a pena/ porque nos ensina a viver alheados do
corso em que a vida se tornou/ e a morrer indiferentes à absurda possibilidade
de qualquer fim.” (p.19) E eis como aquilo que começava como aparente
apreciação singela de um tópico exaurido pelas eras, encerra com uma meditação
despretensiosa, em torno do inevitável fim. No fundo, uma declinação quase
descuidadosa, quase desobediente, de Malherbe: a vida das rosas, como qualquer vida, ocupa o tempo de uma manhã.
Hugo Pinto dos Santos
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